Bebê Rena - O poder e o perigo (?) da empatia

 


Bebê Rena: Drama, biografia, 2024
Direção: Jon Brittain, Josephine Bornebusch, Weronika Tofilska
Roteiro: Richard Gadd
Elenco: Richard Gadd, Jessica Gunning, Nava Mau, Tom Goodman-Hill, 



Haviam pelo menos três filmes e uma série na frente de Bebê Rena, drama autobiográfico da Netflix, pra eu falar a respeito aqui, mas assim como Martha faz com Donny, essa bendita produção me seguiu em todos os lugares até se tornar impossível ignora-la. Então aqui vai minha resenha a respeito da obra:

Logo nos primeiros momentos, já na primeira cena e interação entre os personagens principais, quando a mulher adentra o pub onde Donny trabalha, visivelmente transtornada e chorosa, e ele um tanto retraído e cabisbaixo (ainda que de forma discreta) percebe-se pelo olhar de ambos, que se tratam de duas pessoas quebradas de alguma forma. 

Até aí, nenhuma novidade, pois a vida não é um mar de rosas pra ninguém. Porém, Martha transparece de cara um descontrole e instabilidade notáveis, e mesmo que aquele dia fosse atípico na vida dela (o que notamos rapidamente, não é), sua postura mostra uma fragilidade incomum. O que é incomum também é que isso toque alguém, cause empatia, que uma pessoa a veja nessa nuvem de angústia e lhe estenda a mão, afinal as pessoas tem seus próprios problemas e somos sempre aconselhados tanto a não demonstrar perturbação quanto a não nos solidarizarmos excessivamente (para além do olhar compassivo) com a perturbação alheia.

Um pequeno desvio:

[Engraçado que enquanto escrevia a frase acima, me lembrei do vídeo do Tik Tok que viralizou das pessoas reagindo, ou não reagindo melhor dizendo, à um sequestro de criança no Japão.
Curioso como simplesmente ignoramos as outras pessoas, como se não importassem, só por não as conhecermos e em alguns casos, mesmo conhecidos. Infelizmente, por essa frieza, não podemos culpar a vida moderna ou o país onde se gravou o vídeo, já que desde que há registro de casos criminais em todo o mundo, que se tem relatos de vítimas que imploraram por ajuda a plenos pulmões, estavam sendo vistas e ainda assim não foram socorridas, como o célebre caso de Kitty Genovese em 1964, em Nova York]

Fim do desvio


A xícara de chá, aquela maldita xícara de chá

No que tange a sofrimento solitário, Donny não fica atrás de Martha, e talvez por essa identificação inconsciente, ele a oferece um chá por conta da casa, já que ela não tem dinheiro nem pra isso. 

Um gesto simples, nada demais. Uma pequena gentileza que, segundo o próprio roteirista, foi - até onde ele consegue identificar e entender - motivada pela pena (diga-se de passagem, o pior sentimento que alguém pode sentir por outrem). 
A partir daí, Martha, apesar de se dizer uma advogada muito bem sucedida e ocupada, passa cada vez mais tempo do seu dia, não demorando pra se tornar o tempo inteiro, no trabalho de Donny, interagindo com ele e exigindo cada vez mais de sua atenção.
Quando ela passa, após conseguir o e-mail dele, enviar dezenas, e depois centenas de mensagens diariamente, às vezes falando sobre coisas que ele fez ou lugares onde esteve é que ele percebe o nível de stalkeamento e o perigo que corre.



A demora que revela

Nos primeiros episódios fica claro que Donny é o tipo de pessoa que tem aquele jeito polido mas não necessariamente gentil, delicado ou doce. É educado, respeitoso mas não extrovertido, e mesmo que fosse, quando qualquer pessoa passa dos limites de intimidade dados a ela, é natural que se reaja em proporção ao que pode virar um assédio ou algo mais grave. Donny e sua inércia causam angústia inicial pois ele parece não tomar atitude alguma em relação aos avanços cada vez mais problemáticos de Martha.
Mesmo com o cenário da perseguição se tornando sem dúvidas, criminoso, ele hesita até em falar sobre o que está sofrendo e mais ainda em ter uma ação decisiva, o que me fez questionar se, em algum ponto, será que ele não estava gostando daquilo? Ao menos um pouco? Donny era um comediante sem sucesso, tinha uma vida estagnada e morava com a ex-sogra. Seria tão absurdo assim ele acabar gostando desse transtorno na vida rançosa que levava?

Fiz essa reflexão por muito pouco tempo, pois já no mesmo episódio (não lembro qual, mas é um dos primeiros), a profunda agonia que ele sente, tanto por perceber o quanto aquela mulher é perturbada e precisa muito de uma intervenção psiquiátrica quanto pela desordem que o está causando, percebi que não. Não era esse o motivo. Lembrei de que ela falando com ele que sabia o quanto ele foi magoado. A princípio pensei ser só mais um sinal de seus transtornos, mas depois vi que, ele sutilmente, aquiesce, não com a cabeça, mas com o olhar.

Quando percebemos, após o chocante e dramático quarto episódio o nível traumático dos ataques covardes que ele sofreu nas mãos de alguém que confiava e que parecia ser enfim, quem acreditaria no seu talento e abriria-lhe portas, sendo uma traição e abuso em vários níveis, fica fácil entender que ele não está inerte em relação à Martha, está acuado. 
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Uma atriz fenomenal 

Aqui já aponto a entrega, se não brilhantismo e sobretudo, a sensibilidade de Jessica Gunning ao compor a personagem. Seria muito fácil interpretar Martha como somente uma desequilibrada que não tem.noção alguma de espaço pessoal e limites, de forma caricata e canastrona.
Obviamente que o roteiro de Richard Gadd deixa claro que não quer ridicularizá-la nem falar nada desrespeitoso sobre a mulher, pelo contrário, percebe-se que ele entende o fator do problema(s) mental(is) que ela possui, mas pra além da competência indiscutível do roteiro, existe a profunda e real empatia da atriz. Jessica não interpreta Martha. Ela só "vira" a personagem. É como se, ao aceitar o papel, ela tivesse pensado "essa pessoa pode ser problemática, mas também precisa ter sua voz, também tem qualidades, e ainda é um ser humano. Ela passa a verdade da Martha por completo, com verdade, e naturalidade.Graças ao carisma, talento e compreensão de Jessica, entende-se que Martha precisa ser contida e tratada, mas que também necessita de acolhimento e compaixão.

Uma revelação como ator e roteirista
Apesar de ter uma boa lista de trabalhos tanto na atuação quanto como redator, Richard Gadd não teve nenhum sucesso anterior da magnitude de Bebê Rena.
Talvez por nenhum dos seus roteiros e personagens serem tão pessoais quanto a série da Netflix, ou pelo tempo e liberdade que ele teve pra desenvolver e aprimorar tanto o texto quanto técnica de interpretação combinada com um bom instinto de quando ser mais incisivo, mais expositivo e quando ir pela atuação contida.

A parte do roteiro é fascinante. A assertividade e clareza do enredo, a perspicácia descritiva de personagens, que não os deixa rasos ou simplistas mas também não cai na armadilha de, por exemplo, fazer de Donny um mártir heróico e Martha uma espécie de Coringa-só-que-triste, 

Obviamente que pode-se apontar ao fato de tamanha consciência e coerência derivar da vivência real de Gadd sobre todos os fatos narrados na série, mas esse poderia ser um fator determinante tanto para o bem como para o mal. Vários filmes, séries, livros foram feitos baseados nas vidas reais de seus criadores/roteiristas e tanta proximidade se mostrou prejudicial. No caso de Richard Gadd, é claro que além da coragem indiscutível que ele possui pra abrir certas feridas e expurgar toda essa dor de modo palatável a um grande público, creio que há também boa dose de uma sensibilidade fria, digamos assim. Além de não cair em sentimentalismos desnecessários e não tornar pessoas personagens caricatos de forma cruel pra se sobressair, Richard não faz nenhum juízo de valor sobre ninguém ou nada.

Tudo é mostrado, nada é imposto.
O espectador que pense o que quiser sobre tudo e todos, principalmente sobre ele.


Só mais um detalhe: Nava Mau está ótima e estou vendo opiniões controversas sobre a abordagem do relacionamento do protagonista com uma mulher transgênero. Não me sinto à vontade pra falar muito sobre o assunto, pois sou cisgênero. Do meu ponto de vista, a série não teve nenhuma intenção de ser ofensiva, mas isso não invalida que parte do público veja desta forma. 

Uma série tensa, muito sufocante e em alguns momentos beirando o limite do caos mental e emocional, mas que ainda assim, não me deixou com uma sensação ruim, de choque, de terror ou de repulsa por saber abordar tudo com coerência e certa sobriedade. Pesar, empatia e compaixão por esses dois protagonistas sofridos, foram os sentimentos que indubitavelmente ficaram em mim. 

Recomendo muito, se gosta de um bom drama.


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