Trap/Armadilha: A volta triunfal de Shyalaman e Josh Hartnett com o protagonismo merecido

 



Trap/Armadilha (2024) - 

Gênero: Suspense, Terror/ Thriller, Drama, Mistério, Policial 

Duração: 1h45min

Direção: M. Night Shyamalan

Roteiro: M. Night Shyamalan

Elenco: Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka Shyamalan, Hayley Mills, Alison Pill, Marnie McPhail


Cooper (Josh Hartnett) é o típico cidadão de bem da classe média.

Bombeiro, pai dedicado à família ao ponto de levar a filha adolescente Riley (Ariel Donoghue) para assistir ao evento que é o show da sua popstar favorita, Taylor Sw... quer dizer, Lady Raven (Saleka Shyamalan) fenômeno da música que transformou sua turnê em praticamente feriado nacional nas datas dos seus shows. No caminho ele percebe que o aparato policial é um pouco pesado e extenso demais para um concerto de uma cantora pop, mesmo uma em uma escala de sucesso desta magnitude. Com seu jeito carismático de paizão boa praça, consegue a informação (que deveria ser secreta) que o show na verdade é uma armadilha para um serial killer que está aterrorizando a região, chamado popularmente de O Açougueiro.

Bonitinho o pai herói, né? Ninguém diz que no tempo livre tortura e despedaça pessoas


O plot twist entregue de bandeja: esperteza ou tiro no pé?

Não demora pro público saber (isso quem nem assistiu ao trailer, pois quem viu ou ao menos leu a sinopse em algum lugar já sabe) que O Açougueiro é o próprio pai da Riley. 

A tensão agora se centra em como um serial killer procurado e temido vai conseguir escapar de uma operação do FBI para o capturar.

Se é a saída mais inteligente pôr em risco milhares de jovens, crianças e adolescentes, em sua maioria meninas e mulheres, para pegar um criminoso só, não vamos entrar nessa discussão.

Se trata do M. Night Shyalaman, o texto fazer o mínimo de sentido já é lucro. A princípio, confesso, achei muito difícil que houvesse material de sustentação para o enredo até o final, mas o roteiro é bem pensado, com um deslize aqui ou ali (para uma operação extremamente bem arquitetada, não pensaram na possibilidade dele chegar justamente na estrela do show?!) mas nada que comprometa o envolvimento do espectador com o filme.

Inegável o talento, mais ainda, a verdadeira vocação de Shyalaman para a direção.

Filmar e enquadrar muito bem, de forma marcante, ainda mais quando o objetivo é causar incômodo, claustrofobia e nervosismo é com ele mesmo. 

Os atores falarem diretamente com a câmera nos diálogos, como se estivéssemos no lugar do interlocutor me intrigou no início, mas depois achei um ótimo recurso narrativo, principalmente para compreender as nuances de atuação do protagonista.

Por falar nele, a escolha de Josh Hartnett não poderia ser mais acertada. Obviamente toda a estória é centrada e dependente dele, caso o ator não desse conta do peso, nada mais poderia fazer o filme dar certo. Arrisco dizer que mesmo se o roteiro fosse péssimo (e o ritmo da primeira metade periga muito deixar o interesse se esvair), Hartnett poderia salvar o dia. 

É impressionante como ele transita com uma naturalidade assustadora entre o pai amigo, o cara gente fina, o maluco matador e ao mesmo tempo de sangue frio e raciocínio calculado. Até o final, Josh sustenta com um poder de foco exemplar todas as falas e movimentos, olhares e expressões com uma exatidão do que quer e deve passar que a meu ver, merecia um prêmio. 

Seria sim uma grande auto-sabotagem entregar o plot twist assim, logo de cara, caso M. Night não estivesse inspirado ao escrever o roteiro, ao dirigir e acima de tudo, se não tivesse escolhido perfeitamente o ator protagonista para carregar o filme todo.

 

Roteiro centrado em um homem sim, porém cercado por mulheres

Só me toquei desse fato ao ir ver a ficha técnica do longa para copiar os dados aqui.

E não, não acho que foi sem querer. Acredito que M. Night Shyalaman tinha total ciência que estava sendo mais militudo e militando de forma mais inteligente que feministos e feministas do twitter inteiro.

Espia só:

O filme é sim, logicamente 80% do tempo focado no personagem de Josh Hartnett, porém ele está levando a filhA para um show de uma cantorA (pop, gênero que normalmente é diminuído e subestimado por ter, na maioria das vezes, um público composto de meninas/mulheres). 

É perseguido por policiais do FBI que são chefiados por uma mulher, idosa ainda por cima (o murro no etarismo!). E depois, nas cenas em casa, a esposa, perfeitamente interpretada por Alison Pill ganha cada vez mais destaque. E, adivinha de onde vem a raiz do transtorno que leva Cooper a matar? 

Uma dica: Freud explica. 

Pois é, mais uma personagem feminina (que não aparece, não tem cenas do passado nem nada assim) é intrinsecamente ligada ao enredo, é praticamente a razão de tudo. Josh Hartnett com seu perturbado Cooper é o astro, mas está cercado de estrelas por todos os lados.  

Ariel Donoghue, que interpreta sua filha, Riley tem uma performance que não passa do esperado e no máximo chega a razoável até as cenas finais, nas quais a menina realmente transmite uma dor e desespero que chega a afligir. Emocionante ela correndo em direção ao pai mesmo depois de descobrir tudo a seu respeito.


          Não conhecia Ariel, mas somente por essa cena, preciso vê-la novamente em breve

Destaque também para a filha do diretor, Seleka Shyalaman que realmente é cantora e compositora (ela compôs e interpretou todas as músicas do filme) além de atriz, e apesar da atuação um tanto afetada e forçada em algumas cenas, em outras vai muito bem, talvez em um filme com direção de alguém que não seja da família, ela consiga se sair melhor.

Alison Pill, como já apontado, encarnou perfeitamente a mãe do subúrbio estadunidense. E depois a esposa que se vê traída por algo muito pior que uma traição conjugal. Toda as cenas a partir do momento que ela se torna o foco, são fenomenais, com uma tensão palpável e suspense quase insuportável de tão esmagador. 

Não vou negar que depois de notar esse co-protagonismo massivo feminino, feito de forma tão orgânica, M. Night Shyalaman ganhou pontos comigo.

Agradeço fortemente por essa cena aqui também, viu, Shyalaman. 
  Do fundo do meu coração.
Grata por pensar em nós mulheres, em todos os sentidos, ao escrever e dirigir esse filme.
Uma obra de arte, realmente. 
Graças a Deus, tudo muito artístico.
(Não, sem brincadeira agora: em quantos filmes se dá um jeito de deixar mulheres seminuas?
Gostei de pelo menos uma vez, termos um gostoso descamisado em um filme que não se espera isso)


Shyamalan: Do brilhantismo à chacota (e de volta ao brilhantismo e de volta à chacota, and so on, and so on)

É impressionante como as coisas mudam de uma forma extraordinária às vezes. 

A própria carreira do diretor M. Night Shyamalan daria um dos seus filmes. 

Começando com obras hoje quase totalmente esquecidas - e a primeira quase impossível de se encontrar - Praying With Anger e Wide Awake (Olhos Abertos) e tendo um sucesso vertiginoso com O Sexto Sentido e logo em seguida Corpo Fechado, M. Night se viu sendo chamado de gênio, visionário, e um futuro grande cineasta. 

Não demorou para toda essa fé ser posta à prova.

Sinais com Mel Gibson já demonstrava que seu ego talvez estivesse aparecendo um pouco mais que o talento e A Vila veio desafiando-o a prolongar a fama de diretor prestigiado. A dama na água afogou tudo de vez. Mais e mais filmes com enredos não tão cativantes e reviravoltas, sobretudo as finais, que não se sustentavam jogaram o nome de Shyamalan no limbo dos alvos de piada. 

Ao anunciar um novo projeto a reação em geral ia de "Qual será a nova pataquada?" a "Como ainda permitem que ele faça filmes?". Era quase um consenso geral que mesmo em meio a alguns acertos medianos, seus fracassos ainda eram mais desastrosos. 

Isso até 2016 com Fragmentado, continuação direta de Corpo Fechado.

Graças a atuação fenomenal de James McAvoy, o nome do diretor voltou a ser respeitado, ainda que com certa resistência por parte de crítica e público.

Em 2019 entrou como showrunner e produtor executivo na série The Servant criada por Tony Basgallop, um surpreendente sucesso.

Ainda em 2019 ele regride ao ponto da chacota novamente em Vidro. E em 2021 com Tempo (embora eu admita que gostei da tentativa de explicação final, que não existe na HQ e me frustrou muito, mas a forma que ele desenvolve essa explicação não satisfez, infelizmente)

Com tanta inconsistência é natural que haja desconfiança em sua entrega de filmes com bom roteiro, direção com o mínimo de acertos e um enredo ao menos coerente e convincente pela maior parte do longa. Sendo bem sincera, hoje se assiste um filme de M. Night Shyamalan na base do "seja o que Deus quiser". Às vezes o universo, a indústria e o talento do diretor conspiram a favor e sai um bom filme, como Armadilha. 

O problema é que quando ele tem um êxito, acaba se atrapalhando no próximo e dando um passo maior que a perna, e pior, tendo certeza que está andando a passos largos rumo à genialidade de diretores imortais.


A volta do que não foi

Josh Hartnett teve um breve início de carreira na TV com uma série de drama criminal que teve uma vida bem curta da ABC chamada Cracker. Logo conseguiu oportunidade no cinema com Halloween H20: 20 anos depois, como filho da Laurie Strode (personagem icônica, da não menos icônica Jamie Lee Curtis) e teve uma boa recepção tanto de público quanto de crítica que passou o filme todo se perguntando onde esse rapaz bonito, carismático, charmoso e com um talento no mínimo promissor estava escondido. Foi escalado em seguida para produções como The Faculty (Prova Final), As Virgens SuicidasFalcão Negro Em Perigo e Pearl Harbor (se você está tendo leves flashbacks da sua adolescência e de um filme com fotografia um pouco saturada, que romantiza e glorifica a guerra de uma forma quase poética com a Kate Backinsale de cabelo cacheado e Ben Affleck no galã-modo-turbo, é esse mesmo. Não reassista. Conselho de amiga). 

A partir daí, na verdade, no processo entre um filme aclamado e outro, Josh foi alçado ao posto de astro teen e não há nada pior pra quem deseja fazer arte do que isso. Tudo o que ele fazia era visto com a lupa de aumento da histeria juvenil e super estimado até um nível irritante.

A cada capa de revista Josh era herdeiro de um galã diferente. Um dia era o novo Gary Cooper, depois era chamado "filho" de Tom Cruise, no outro, era anunciado como figurativamente Leonardo DiCaprio lhe passava o bastão de arrasador de corações e bom desempenho em papéis variados.

Como de fato ele era (e continua sendo) um bom ator e com a cabeça no lugar (ao menos em uma porcentagem maior que teria a maior parte dos rapazes da sua idade e que estivesse em tamanho lugar de destaque e privilégios), Hartnett se sentia pouco merecedor de tanta pompa. Claro que se sentia grato pelas comparações, mas tinha noção que todos os atores citados haviam passado por papéis realmente desafiadores que justificavam essa festa toda. Não era bem o caso dele.

Buscando dar somente alguns passos atrás e respirar um pouco, dado o sufocamento que a fama lhe causava, ele foi de encontro a papéis menores em filmes menos populares, o que segundo os estúdios e produtores soava como arrogância, mesmo sendo justamente o contrário.

Josh só queria papéis mais condizentes com o nível de aprendizado no qual estava, não o charme que possuía. O rapaz queria ser ator, não um modelo com falas. Porém, aparentemente, isso não foi bem visto e os executivos o chamavam de ingrato.

O "hiato" de Hartnett não foi tão dramático, no entanto. Não houveram portas fechadas na sua cara nem nada tão cortante. Se tem uma coisa que o pessoal em Hollywood não é, é burro, pelo menos no que tange a possibilidade de lucro e o ator é, sem dúvida, alguém que sempre atrairá a audiência, estando em um papel e longa minimamente razoáveis. Seus papéis foram "diminuídos" - por assim dizer - em destaque em parte porque ele mesmo quis, e depois que veio o casamento com a atriz inglesa Tamsin Egerton e nascimento das filhas, a busca pela volta ao estrelato, que já não era tão importante, perdeu quase o sentido completo.

O retorno a papéis de maior protagonismo e, consequentemente, à mídia, tem sido natural nos últimos anos. Cada vez que o chamam pra algum papel mais acentuado, mesmo que não tão perto do protagonismo, como foi com Oppenheimer, Wrath of a Man (Infiltrado) ou a participação especial na terceira temporada da série The Bear por exemplo, mais de uma prima, uma tia, uma mãe fala "nossa, a quanto tempo não via Josh Hartnett" e conta como ele era o queridinho anos atrás, e mais de uma geração fica um tanto consternada com o talento e também o charme que ele exala.

Não acredito que sua volta vá reescalar até o nível estratosférico do início da carreira, tampouco creio que é o seu desejo, mas percebo uma consistência em papéis cada vez mais densos e importantes, sob vários aspectos, dados a ele. Que permaneça assim, e que os executivos aprendam de uma vez a respeitar o tempo e preparo dos jovens astros, para que eles não mais tenham que decidir entre dizer "amém" a tudo ou "tomar chá de sumiço" para terem um pouco de paz.   


Em suma: M. Night Shyalaman acerta novamente - mas não totalmente - em um suspense de tirar o fôlego, com atuação irretocável de Josh Hartnett e cercado por atrizes com destaque e talentos mais que suficientes para desenvolverem uma estória inteligente, bem concebida, e perfeitamente executada. Recomendo demais.



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