Anything For Jackson: Quando a dor ultrapassa o bom senso, não há Deus ou Demônio que ajude.

 


Direção: Justin G. Dyck
Roteiro: Keith Cooper
Elenco: Sheila McCarthy, Julian Richings, Konstantina Mantelos, Josh Cruddas, Yannick Bisson

Não existe dor pior que perder um filho. Talvez somente perder um neto seja mais torturante. Se ser avó/avô é ser mãe/pai duas vezes, o luto por um neto provavelmente também é duplicado.
Em vez de entrar para um grupo de apoio, procurar um bingo, ou um terapeuta, o casal de idosos Henry e Audrey Walsh (Julian Richings e Sheila McCarthy) passa a adorar a Satã, e isso não seria exatamente um problema por si só, mas aí, eles decidem sequestrar uma mulher grávida, Shannon Becker (Konstantina Mantelos) para usar o seu futuro bebê como hospedeiro da alma do falecido neto, Jackson.



Roteiro bom é roteiro homogêneo

Ninguém se enfurece mais com extensões desnecessárias do que eu. Boas introduções em filmes de terror nem são tão raras, mas introduções nas quais o desenvolvimento continue consistente e os fios se conectem do começo ao fim, isso sim, é bem difícil. Keith Cooper, roteirista cujo trabalho eu não conhecia, mas segundo o IMDB, transitou bastante (assim como o diretor Justin G. Dyck, também desconhecido por mim, antes deste filme) entre filmes de comédia familiar, e filmes românticos de Natal. Isso não é demérito algum, só demonstra um pouco de sua versatilidade (e do diretor). 

Acredito que você possa ficar um pouco perplexo como eu fiquei quando perceber que o filme já começa sem enrolação alguma, e simplesmente vai adensando a trama, aprofundando o drama, o suspense e o terror de forma quase irretocável. O ritmo do longa-metragem, que não se demora onde não deve, contudo, também não é apressado demais, é outro forte ponto positivo, e sim, graças ao roteiro combinado à direção.


Um casal satanista, mas não cruel, como assim?

Nada que apresente satanistas em filmes de terror costuma sair do clichê: "Adoro o Capiroto porque sou malvadão e mato pessoas porque sim". Isso, além de um enorme preconceito (já que o Satanismo é uma religião como qualquer outra e seus adeptos são seres humanos que tem o direito de se sentirem ofendidos sendo mal representados), é uma forma preguiçosa e estúpida de se apresentar personagens. O drama da perda e o psicológico afetado pela dor dos idosos colabora para que o público entenda que não são monstros sedentos de sangue que só querem poder. Com o andar dos acontecimentos é quase impossível não torcer pelo bem deles, não que o espectador passe a concordar com as atitudes desesperadas dos protagonistas, mas ao menos a empatia vem naturalmente e de forma decisiva, não oscila nem decresce. Você pode conseguir entendê-los? Sim. Defendê-los? Não. 




Flashbacks explicativos, mas não excessivos

Como as cenas iniciais já são impactantes, sem uma explicação introdutória, o recurso utilizado para fazer o espectador compreender o que ocorreu e o processo até chegarem ao ponto onde se encontram foi o flashback. Quando bem utilizado, é um recurso que agrega à narrativa, muito embora vários cineastas acabem caindo no texto e cenas expositivas demais e em uma excessividade de "voltas no tempo" que acabam inchando a obra e impacientando o público. Aqui, não é isso que acontece, felizmente. Quando se volta na linha temporal, normalmente é por um personagem estar pensativo, lembrando de tal coisa, e nos leva a crer que talvez não esteja tão convencido do rumo que está tomando. Nada é muito dito com palavras, preferem mostrar que falar, o que foi uma ótima decisão. Mais do que não falar, é nas pequenas omissões e no que não é dito, que as nuances dos personagens se tornam mais evidentes.

Fotografia inteligente 

A fotografia é discreta e complementa a narrativa com sobriedade. Sem exageros, é nítida a diferença da palheta de cores mais quentes quando acontece uma cena no passado e quando estamos no presente, frio, sombrio e sem perspectiva de melhora. 
Tudo tem um tom puxado pro cinza, tudo fica meio desbotado, explicitando a ausência de vontade de viver do casal e o destino que aguarda a refém deles.
A sanidade de todos os envolvidos está por um fio, e os jogos de luz e sombra também tornam essa característica mais palpável. Há também pequenas mudanças na fotografia quando ocorrem os primeiros sinais sobrenaturais, dando a entender que algo de outra esfera está intrusa no local, conforme tais acontecimentos se tornam parte cada vez mais presente da casa, essas mudanças cessam. Ou seja, eles já passaram de lá pra cá. 




Atuações que vão de dignas a assombrosas

Konstantina Mantelos que dá vida à Shannon Becker não me pareceu familiar, e realmente, não vi nada do que ela fez (segundo o IMDB). Porém, isso não foi empecilho para perceber que a moça possui um talento razoável. Sua atuação foi digna, com alguns momentos se sobressaindo e causando ainda mais aflição tanto por ela quanto pelo bebê. Não foi brilhante, mas não foi nenhum desastre. James Wan, favor dar um papel pra ela em algum filme seu e, de preferência que seja um roteiro escrito pelo Keith Cooper.


Sheila McCarthy faz o papel de Audrey Walsh e é daquelas atrizes que vemos em trezentos filmes diferentes em papéis secundários e sempre pensamos "tomara que lhe dêem um papel de destaque no próximo filme". O destaque chegou e ela foi assombrosa. Audrey é, na minha opinião, a personagem mais complexa e mais difícil de decifrar e traduzir. Ela é frágil, mas forte, doce, mas capaz de atitudes perversas, se compadece da refém, mas não o suficiente para desistir de seus planos. Atriz e personagem fascinantes.



Julian Richings, que interpreta Henry Walsh é mais conhecido por seu papel como Ceifador na série Sobrenatural/Supernatural e lá ele já demonstrou um talento absurdo para papéis mórbidos. Julian passa em micro expressões e tons de voz suave diferentes facetas do personagem e de forma sublime. Ao espectador mais desatento, pode não parecer, mas a atuação de Richings é rica e profunda. Um deleite.

 



Claro que nada desses atributos positivos estariam longe de serem condensados de maneira proveitosa se não estivessem sob uma direção competente. 
Justin G. Dyck não faz nada de muito diferente ou fenomenal na obra, mas orquestra a produção com competência sóbria. Não busca o gore pelo gore, o choque pelo choque, as tomadas são feitas de forma sensata, de maneira que o público consegue entender tudo o que está se passando em tela. Tanto o que é visto, quanto o que não é mostrado. Esse nível de sensibilidade é que faz grandes diretores. Tomara que ele continue assim. Quero ver mais filmes dele, principalmente de terror.

Em suma: gosta de estórias de terror com uma boa dose de drama contadas de forma coesa e sensível?
Então assista Anything for Jackson hoje mesmo.
                                                       
                                                                                                              Nota: 8.5
 
* o filme não está disponível em nenhuma plataforma de streaming no Brasil, mas se encontra em vários sites alternativos e programas/apps como o Stremio


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