Noite Passada Em Soho: Os perigos do machismo, da ingenuidade...e da expectativa.

 


Direção: Edgar Wright
Roteiro Krysty Wilson-Cairns, Edgar Wright
Elenco: Thomasin McKenzie, Anya Taylor-Joy, Matt Smith (XI)
Título original Last Night in Soho

Edgar Wright é um dos diretores mais festejados da atualidade.
Porque usei essa palavra? Você pode se perguntar. Porque festejados, e não consagrados, respeitados? Porque seus filmes, na minha concepção, são muito bem feitos, causam expectativa de uma boa diversão, (com a exceção de Scott Pilgrim contra o mundo, que me causa, inclusive, repulsa), mas ainda não chegaram num nível que, assim que ele anuncie um novo projeto, eu já tenha respeito e espere uma produção que me "alimente" de cultura pra além da diversão. O que, na verdade, sendo bem sincera, não é muito importante pra mim. Sou muito mais a favor de um entretenimento maroto, que você pode ver dez vezes por ano e sempre te dá um alívio do stress diário, do que algo mais "substancial", ou usando um termo em voga ultimamente, "agregador", digamos assim. Contudo, esse filme não consegue, a meu ver, nem divertir, nem agregar o que deseja com sua mensagem de crítica social.


O que deu errado?

Justamente esse é que acredito ter sido o problema com o trabalho de Wright. 
Noite Passada Em Soho quer muito passar da barreira do entretenimento puro e acaba descambando pro hipócrita e imbecilizado edificador-crítico-social-phoda-lacrou-pisou-toma-sociedade patriarcal (desculpem-me o linguajar, mas, francamente, não tenho como exprimir educadamente minha profunda irritação com esse tipo de coisa, que já deu o que tinha que dar a décadas).

Não sou de ter lá muita expectativa com nenhum filme ou série. Evito até ver trailers, ou saber qualquer coisa que possa me dar ideias que depois se frustrem e acabem minando minha experiência com a obra em questão. Porém, nesse caso, dada a sinopse do filme, as fotos que estampavam absolutamente todo lugar na internet (por mais de um ano, diga-se de passagem) e o elenco envolvido, acabei me deixando ter uma pequena, porém persistente, noção pré-concebida e já dando como certo que, ao menos gostaria muito do longa-metragem. Grande engano. Não "ledo engano", pois "ledo" significa que o erro levou a um agradável fim, o que não aconteceu. 

Como não ter expectativa com uma foto dessas estampada três vezes por semana na sua cara por mais de um ano?



Sinopse promissora, execução pífia

Noite Passada em Soho acompanha Eloise (Thomasin Mckenzie), uma jovem apaixonada por design de moda que consegue, misteriosamente, voltar à década de 1960. Lá, ela encontra Sandy (Anya Taylor-Joy), uma deslumbrante aspirante a cantora por quem é fascinada. O que ela não contava é que a Londres dos anos 1960 pode não ser o que parece, e o tempo passa cada vez mais a desmoronar, levando a consequências sombrias.

Bom, o que já me causou certo incômodo de cara, é que, por um ano (ou mais, já nem sei ao certo quanto tempo o filme ficou aguardando lançamento) ficou na minha mente, pois a sinopse diz isso, que Eloise era fascinada não só pela década de 60, como pela Sandy, ou seja, Sandy seria não uma aspirante, mas uma cantora famosa, certo? De que outra maneira alguém jovem atualmente seria fã de alguém de uma década tão distante? No filme fica claro que Sandy não alcançou o estrelato e que Eloise só a conhece quando "volta no tempo", o que acontece e não acontece, na verdade. (se quiserem uma versão com spoilers, me avisem nos comentários que explico o que ocorre, do meu ponto de vista, claro)

Esse equívoco que tem na sinopse não seria grande coisa se o desenrolar do longa-metragem fosse satisfatório. Parece que os roteiristas (o diretor sendo um deles) tiveram preguiça de desenvolver uma estória coerente e se deram por felizes com uma boa premissa, o elemento fantástico e a crítica social.

"Sentido pra quê? Coesão? Bobagi. Profundidade real? Precisa não, só parece profundo, tá bom assim". Juro que penso nesse estilo de conversa entre roteiristas e direção. 

                                        "Então, só fica ali e seja bonita. Certo, docinho?" 


Atuações Imberbes

Thomasin Mckenzie, normalmente tão intuitiva e dona de uma doçura graciosa, porém não infantil, aqui parece uma criança perdida, assustada (cada vez mais assustada) e, até com capacidade de raciocínio limitada. É compreensível seu comportamento reticente e tímido no início? Sim, é. Mas à medida que as coisas avançam, parece que ela perde o simples poder de pensar! Ora, se ela está sofrendo de algum distúrbio psiquiátrico, então deveria procurar ajuda profissional. Se ela sabe que não se trata disso, e as pessoas que vê não são realmente pessoas (ao menos, não encarnadas), de nada adianta, por exemplo, fechar uma porta, pois espíritos não são parados por elas. Simples, né?! Pois, para Eloise, isso é o mesmo que pedir-lhe que faça o cálculo de quantas mentiras todos os políticos brasileiros e estadunidenses disseram desde a proclamação da república nos dois países.

Anya Taylor-Joy é uma unanimidade. Normalmente concordo com Nelson Rodrigues (o que raramente faço se tratando de qualquer outra coisa) quando dizia "toda unanimidade é burra". Porém, no caso de Anya, nunca vi algo que possa indicar nada além da mais absoluta competência nos trabalhos da menina. Aqui, porém, não por culpa sua (assim como a aparente estupidez da personagem de Mckenzie não tem nada a ver com o talento da atriz), mas do roteiro incipiente, Sandy é mais um enfeite e manequim de figurinos, maquiagem e penteados perfeitos do que uma personagem que mova a trama. E, quando o faz, faz de forma atabalhoada e confusa. Não aquela confusão que se percebe ser intencional e que causam voltas para explicar um ponto, não. São voltas de quem não tem o que contar e precisa enrolar o suficiente para o filme "render".  Anya Taylor-Joy é a água no feijão que é Noite Passada Em Soho. Feijão sem ferro, sem tempero, sem gosto, e perigando estragar.

                   Desperdício de talentos deles e tempo e paciência meus                  



A maldita crítica social phoda [desculpem, mas preciso fazer um desvio aqui]

Virou praticamente obrigação falar de alguma minoria, alguma causa, fazer alegoria, usar uma metáfora pra falar de um problema crônico da sociedade. E, sim, jovem justiceiro social, sei que o cinema sempre foi uma ferramenta para falar do que há de errado com o mundo, quando não para fazer franca propaganda política e ideológica. Mas isso não quer dizer que tais usos sejam aconselháveis, e principalmente, que os reais resultados sejam alcançados. Raramente um filme, série, peça de teatro, animação, livro muda os parâmetros da sociedade vigente na época e molda um futuro melhor. Não que seja esse o intuito de todos os cineastas que fazem esse tipo de obra, mas, certamente, seria um fator a considerar quando se pensa em criar esse argumento. "Será mesmo que posso falar disso sem soar somente pretensioso e condescendente? O que estou visando, de verdade, com esse roteiro?". Garanto que, se a maioria dos diretores se fizesse essa pergunta, muita lambança seria evitada.

Todos sabemos que a década de 60 foi um marco para o feminismo. Que se deu um basta em muita coisa, e que, ainda assim, pois as mudanças não ocorrem da noite para o dia, ainda foi uma década marcada por muitos abusos e covardia contra mulheres. E, outra coisa, que, senão todo mundo, uma grande parte das pessoas, também sabe, que Londres foi, nessa década, o polo de revolução, desobediência e transgressão do mundo. Era um momento de auto-descoberta e Londres era uma adolescente saudável saindo do convento pela primeira vez. 

Ora, se até a Disney, a boa-moça santarrona da indústria cinematográfica (nesse momento tô literalmente pondo a mão na cabeça e rindo pra não chorar com o que vou ser obrigada a concluir a seguir) conseguiu, em Cruella (crítica aqui)passar com dignidade e conhecimento esse fervor da época, porque, Edgar Wright, um britânico, inteligente e jovem diretor, não? Porque, mais uma vez, se trata de um feministo.


Calem-se todos, (mais) um homem vai falar de machismo



O real porquê de muitos filmes com propósito "social" não funcionarem

A maior parte dos diretores não tem ideia do que está falando. Não vive a própria mensagem. Porém, não é exatamente esse o problema. Vários filmes feitos na ignorância da causa são bons e geram reflexões genuínas. A razão por trás da falha é um pouco mais complexa e subjetiva. Abstrata, até:

Sensibilidade. O que isso significa? Significa que não adianta um homem, que, por mais que seja realmente um aliado ao feminismo, querer fazer uma obra voltada com mensagens que ele não tem como entender a forma de fazer chegar ao público de maneira que, além de compreender, se sinta realmente como as mulheres são, muitas vezes subestimadas, objetificadas, descartadas e, por serem vistas como objetos, assassinadas. 
Mas você mesma disse que vários filmes feitos na ignorância dão certo. Sim, eu disse, jovem gafanhoto. Contudo, isso acontece porque, talvez até por uma inspiração divina (vai saber?), os diretores dessas obras se mantém no seu lugar, ao passo que os que não conseguem transpor o limite do "tô-mostrando-a-causa-social-me-aplaudam" são os que se julgam conhecedores e fazem parte daquele grupo do qual se fala. 
Um exemplo rápido: algumas atrizes que fizeram o filme The Help (Histórias Cruzadas) dizem agora que se sentem envergonhadas por o terem feito, já que o filme retrata o ponto de vista de uma mulher branca. As atrizes têm direito a se sentirem como quiserem, mas, da minha perspectiva, o trabalho ficou ótimo, e suscitou debates reais que mudaram algumas dinâmicas de relações entre patroas e empregadas em algumas casas. Ou seja, mesmo estando "errado", deu certo! Porque ao fazer a obra se centrar no ponto de vista da mulher caucasiana que tinha real empatia pelas outras, o desrespeito e humilhação das empregadas fica evidente e realista. É sensível. Impossível não se emocionar e perceber como isso ainda é comum e profundamente errado. Ironicamente, o que é julgado e "cancelado" no filme, pra mim, é o que o torna correto. Em Promising Young Woman (Bela Vingança) — crítica aqui — vemos uma estória que poderia ser baseada em fatos reais, de tão comum que é o crime do qual a protagonista busca vingar-se. É absurda a naturalidade como as coisas se dão, no sentido de opressão e sentimento de cansaço e frustração que Carey Mulligan soube passar tão bem, mais ainda, a destreza do conhecimento intrínseco do assunto que a diretora Emerald Fennell possui como mulher, mesmo não tendo passado - até onde eu sei - por nenhuma situação traumática como a que se aborda no seu filme. Naturalidade essa que passa longe do longa de Wright.

Só mais um exemplo, pra tentar me fazer entender: nos discursos de premiações é já tradicional o palanque para militâncias A, B, C, e por aí vai, feminismo então, é quase obrigatório, já. Normalmente, de cada dez discursos, só não me reviro os olhos com dois, e me emociono verdadeiramente com um. Porque? Porque sou insensível? Não. Porque somente dois são calcados em reais vivências e somente um deles é quase um desabafo necessitado de exprimir como aquela pessoa, ou quem ela representa, foi dolorosamente oprimida(o). Estou me referindo a dois discursos que me pegaram desprevenida e um, me fez aplaudir, o outro chorar com lembranças próprias. O primeiro foi em 2018. 

No Oscar que levou como melhor atriz por seu papel em Três Anúncios Para Um Crime, Frances McDormand disse: "Ficaria honrada se todas as mulheres indicadas ficassem de pé comigo agora. Meryl, se você fizer, todo mundo vai. Cineastas, produtoras, roteiristas, fotógrafas, compositoras, designers, Ok! Agora olhem à sua volta. Senhoras e senhores. Todos nós temos histórias para contar e projetos que queremos financiar. Não falem sobre isso na festa hoje. Nos chamem amanhã nos seus escritórios ou venham vocês aos nossos e vamos falar tudo sobre os nossos projetos. Eu tenho duas palavras para compartilhar com vocês esta noite: Inclusion. Rider. (algo como piloto de inclusão)."

A atriz e produtora conhece, vive e sofre o machismo e preconceito na indústria hollywoodiana de perto, o discurso, pra mim, não soa nem como militância, e sim, como uma espécie de alerta, uma descortinação para dizer que, aplausos e festa são muito bons, mas que tal, após a festa, pôr o discurso inclusivo e feminista (e antiracista, e sobre inclusão de outros grupos, como gordos e deficientes) em prática? Foi uma forma contundente de dizer "vocês precisam parar de somente hastear bandeiras e começar a vivê-las". 

O segundo discurso é o de Glenn Close ao levar o Globo de Ouro por A Esposa  em 2019.

A atriz emocionou o mundo com um tocante relato pessoal que me levou às lágrimas por me fazer lembrar da minha própria mãe. 

"[...]Interpretar uma personagem tão interna…estou pensando em minha mãe, que realmente ficou priorizou meu pai a vida toda. Quando estava na casa dos 80 anos ela me disse: ‘Sinto que não conquistei nada.’ E isso não era certo. Sinto que o que aprendi com essa experiência é que, sabem, as mulheres são cuidadoras, é isso que é esperado de nós: temos nossos filhos, temos nossos maridos ou parceiros ou qualquer pessoa – se temos sorte. Mas temos de encontrar nossa realização pessoal. Temos de seguir os nossos sonhos. Temos de dizer: ‘eu posso fazer isso, e deve ser permitido que eu faça isso.’ 

Quando era criança eu me sentia como Mohammed Ali, que era destinado a ser boxeador. Eu me sentia destinada a ser atriz. Vi os primeiros filmes da Disney e Hayley Mills e disse: ‘Eu posso fazer isso!’ Em setembro farei 45 anos trabalhando como atriz e não posso imaginar uma vida mais maravilhosa.

Obrigada Björn Runge, que dirigiu ‘A Esposa’, confiou no close-up, sabia onde colocar a câmera e como nos iluminar. Jonathan Pryce, que grande parceiro. E à minha filha Annie [Starke], que criou a base da personagem. Amo você, minha querida. muito obrigada.”

Glenn não diz que sua mãe era oprimida ou chama o pai de macho tóxico. Porém, se você experencia alguma toxicicidade masculina na sua vida, automaticamente o discurso te remete a isso. Ele é orgânico, flui e atinge o coração no mais pleno sentido. Porque é real. Não é político, não é ideológico. É somente a vida dela. Glenn não usou a premiação como palanque para suas militâncias, só fez um relato pessoal, íntimo e dolorido. Se doeu em muitas de nós foi porque vivemos e fomos criadas com e por mulheres que foram caladas e vilipendiadas, quando não agredidas e abusadas, e por isso a sua fala é mais significativa do que uma roupa com nomes de diretoras, ou qualquer outro ato que parece genuíno mas visando mesmo é aplauso e holofote.

Em suma: Vocês, cineastas com sede de pregação, podem falar sobre o que quiserem, desde que se atenham ao seu próprio papel na causa que planejam defender.

[Fim do desvio, voltando para a crítica]

Não falei sobre as outras atuações porque só há grandes atores e atrizes aqui, mas, ou não estão tão bem porque o roteiro não lhes dá nada (pobre Matt Smith, interpretando, mais uma vez, um covarde tóxico - sim, depois de The Crown), ou, não importa o quão espetacular seja o trabalho deles (Diana Rigg, incrível, em seu último papel), não transforma o péssimo em bom. A história não vai a lugar nenhum e, quando vai, quase não faz sentido se você não fizer um grande esforço para entender isso. Desnecessário dizer que em um bom filme você não precisa fazer nenhum esforço para o entender, fazer sentido ou gostar do que está assistindo.

A edição é boa, a trilha sonora é perfeita, o figurino é poderoso, o cabelo e a maquiagem são soberbos, então, tecnicamente, sem falhas. É uma pena que a excelente equipa técnica não seja suficiente para fazer um bom filme.

                                                                                                             

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