Round 6/ Squid Game e Missa da Meia-Noite: O terror tem várias formas, mas a humana continua sendo a mais terrível.
Round 6 / Squid Game e Missa da Meia Noite só tem uma coisa em comum: as duas são maravilhosas.
Mesmo que a primeira também tenha um fator um pouco puxado para a fantasia, ainda assim é uma fantasia calcada na realidade no sentido de não haver nada ligado a nenhuma mitologia ou nada sobrenatural.
Com a segunda é quase o completo oposto. Certamente ela se sustenta muito além do terror e da sanguinolência, mas a mitologia encenada aqui tem um papel vital.
Cada uma dessas séries merecia sua crítica individual, mas por vezes acontece de a coisa ser tão boa que fico desnorteada e até esqueço as palavras.
Vamos lá, pelo menos tentar dar corpo ao sentimento de Que coisa incrível! Preciso falar disso! que ambas as séries me passaram. E porque falar das duas num artigo só? Porque não quero me estender mais do que o necessário. Talvez se eu der um detalhe a mais, principalmente sobre Missa da Meia Noite, isso já possa dar uma espécie de pista que te leve a compreender tudo muito rápido e uma das melhores coisas dessa série é o impacto que vem com as revelações e descobertas.
Round 6/ Squid Game
Incrível como o povo sul-coreano tem talento artístico. Seja na música, seja no cinema ou na TV. Impossível hoje em dia a gente, por mais "alienado" da cultura oriental que se seja, não saber como o K-Pop dominou o cenário musical.
Alguns anos atrás Invasão Zumbi virou um fenômeno, mas como se tratava de um filme com o tema apocalipse zumbi, não alcançou o status de febre mundial. Mais perto, bem mais perto disso chegou o ganhador do Oscar, Parasita que virou parada obrigatória para todos os amantes da sétima arte.
Agora chegou a vez da série Squid Game ou Round 6 (nome que só foi usado no Brasil) arrebatar fãs de todo o mundo e se tornar a série mais assistida na história da Netflix.
Pudera. Os nove episódios passam voando, de tão ágil que é o ritmo. Os atores são impecáveis. Vi algumas pessoas falando de atuações canastronas e exageradas. Não é o caso aqui. O que acontece é que, sim, algumas reações de lá são mais exageradas, algumas vezes existem umas "apelações" sentimentais inconscientes até. É uma coisa cultural. Não ficou forçado, ficou condizente com a cultura do povo apresentado.
No início, nós conhecemos o protagonista Seong Gi-Hun que apesar de carismático e ser uma boa pessoa, é um apostador compulsivo e mentiroso contumaz. Deve pra Deus e o mundo.
Ama a filha de todo o coração, mas a ex-esposa não o quer perto dela por ele não ser confiável e uma má influência.
Nisso, ele conhece um rapaz no metrô, (numa curta, porém ótima participação de Gong Yoo, protagonista de Invasão Zumbi) que lhe oferece um desafio: jogar um jogo infantil parecido com o bafo (aquele que se vira as figurinhas "abafando-as" com as mãos mas sem encostar nelas e quem virar mais fica com as do colega) e, a cada rodada que ganhar, leva dez mil wones, se perder, leva tapas na cara. Ele perde algumas rodadas, e apanha bastante, mas no fim consegue uma boa grana - que lhe é roubada por uma jovem ladra em situação pior que a dele - e recebe uma proposta: caso ele ligue para o número no cartão que lhe é dado, com o talento dele para aquele tipo de jogo, poderia participar de uma competição na qual ganharia muito dinheiro. Vendo que não tem outra opção, ele vai.
Ao chegar no local, ele vê Kang Sae-Byeok, a menina que o roubou (para quem esta autora estava torcendo), uma refugiada vinda da Coreia-do-Norte, interpretada magnificamente por uma atriz que já virou uma das minhas favoritas, Jung Ho-Yeon.
Lá ele também encontra seu amigo de infância, que ao se formar numa universidade prestigiada, virou o gênio e orgulho do bairro pobre onde moravam Cho Sang-Woo, vivido exemplarmente por Park Hae-Soo e mais de quatrocentos outros participantes.
Entre eles: Abdul Ali, o imigrante paquistanês enganado pelo chefe e trabalha de graça, sem condições de sustentar a mulher e o filho pequeno numa comovente desempenho de Tripathi Anupam.
Jang Deok-Su, um gângster desalmado feito muito bem por Heo Sung-Tae.
Han Mi-Nyeo, uma mulher que faz tudo para sobreviver, numa atuação pungente de Kim Joo-Ryung e Oh Il-Nam, um senhor que tem uma doença terminal, portanto, não vê motivo para não se arriscar naquela competição, vivido por Oh Young-Soo.
Não demora para que os acontecimentos tenham consequências terríveis, e as cenas em que tais acontecimentos se dão são, no mínimo, chocantes e muito bem feitas. O cenário é feito pra causar agonia e mal-estar, a sensação sufocante que os jogadores passam, você também é levado a sentir. Conforme os acontecimentos se desenrolam, um policial trabalhando por conta própria, sem avisar a nenhum colega, menos ainda a seus superiores, consegue se infiltrar entre os funcionários daquela loucura e vai investigando com o intuito de descobrir o paradeiro de seu irmão. Estarrecido com a crueldade que testemunha, ele deseja, além de encontrar o irmão, também conhecer o responsável por tudo aquilo e o levar à justiça.
Eu sabia existir um estigma pesado nos refugiados da Coreia-do-Norte ao irem para a do Sul, mas não fazia ideia de como outros imigrantes, como o que o personagem Ali sofrem no país. Apesar de a série não se aprofundar tanto nesses temas, porque, afinal é uma série, não aula de geo-política, fica clara a mensagem passada. E como essa e outras ideias são mostradas ao espectador são não só bem executadas, mas até sublimes em certos pontos.
Além do roteiro muito bem escrito, a execução do mesmo é um primor. O design de produção é excelente, e tecnicamente, quase perfeita. A série realmente quase não possui defeitos notáveis.
A luta de classes é óbvia, mas fique tranquilo, não há panfletagem política. É muito mais sobre o egoísmo e ganância humanos do que "contra o sistema". Aliás, se você viu a série e não captou a ironia do "dono do jogo" nas suas falas contra o capitalismo, bem, talvez devesse rever (tanto seus conceitos ideológicos quanto a obra televisiva).
Vou parando a crítica de Round 6/Squid Game por aqui porquê, bem, provavelmente, minha missão de querer te fazer assistir essa obra magnífica que já fez história.
Em tempo: tanto se fala na série sobre como o ser humano vê o semelhante sofrendo e, quando não se compraz naquilo, não faz nada a respeito, e nós estamos fazendo o quê?! Vendo uma série com personagens em sofrimento intenso e comendo pipoca. Será que foi proposital do criador, roteirista e diretor Hwang Dong-hyuk embutir a ideia de que, no fundo, não somos melhores que ninguém dali? Fica a reflexão.
Nota: 8.8
Missa da Meia-Noite
Mesmo com nomes como Isabela Boscov falando que essa série foi a melhor obra feita por Mike Flanagan - o que já não seria fácil, tendo em vista que ele foi o responsável por filmes como Espelho (de 2013, com Karen Gillian), Hush, Jogo Perigoso (ótimo, também da Netflix) e Doutor Sono (esse não me agradou tanto, porém não pelo filme em si, mas por uma interpretação de um personagem de Stephen King e que aqui continua a mesma adaptação errônea, a meu ver, que teve em O Iluminado) e séries como A Maldição da Residência Hill, A Maldição da Mansão Bly - eu ainda assim não estava lá muito certa de que tanto “hype” era justificado. Era. Era muito.
Os primeiros episódios, principalmente os três primeiros (a série contém sete, cada um com uma hora de duração) tem um ritmo mais contemplativo, mais pautado por diálogos. Porém, não pense você que isso os torna chatos. Pelo menos pra mim, só aguçou a curiosidade de saber onde aquele povo, aquela cidade com tamanho ar de desalento e crise existencial iria chegar. As discussões filosóficas, sejam nas falas das conversas entre Erin (Kate Siegel, em outra atuação muito convincente) e Riley, (Zach Gilford, que vi em várias séries e filmes, mas nunca me chamou tanta atenção como aqui) ou Riley e Padre Paul, interpretado por Hamish Linklater, fenomenal em tudo, nos gestos, olhares e principalmente no trabalho de voz. Incrível como ele modula seu tom pra quando está falando de maneira amigável, porém quase formal, depois para quando ele fala com pessoas que tem seu carinho pessoal e é mais íntimo e como muda drasticamente para seus discursos inflamados. - detalhe que quem me chamou a atenção pra isso foi a Isabela Boscov nesse vídeo.
Tenho visto muita gente falando que não conhece o ator e isso me foi surpreendente, porque o homem tem um extenso currículo e, apesar de eu não o ver a um bom tempo - desde "As Novas Aventuras da Velha Christine", série da CW de 2006 que entrou agora na HBO Max - sabia que ele esteve em "Legião", por exemplo. Até tentei assistir à série, mas não deu. Se quer ir atrás de mais filmes e séries nas quais ele está, aqui tem o link de sua filmografia no site Adoro Cinema.
Se eu não me engano (e se estiver errada, por favor, fale nos comentários de maneira respeitosa), essa obra utiliza uma criatura e mitologia do gênero de horror/fantasia de forma inovadora. Nunca vi nada parecido. Nem lembro de algum livro que me remeta ao que foi feito aqui. Embora o próprio Flanagan tenha dito que se inspirou em obras de Stephen King e algumas outras, não foi inspiração suficiente mesmo para quem leu esses livros e outros sobre tal tema, que possa se fazer uma relação, ao menos não de cara. No segundo episódio eu desconfiei por coisas do primeiro que se confirmaram nele. Perguntei no Twitter se era isso mesmo (a pergunta foi apagada depois que me responderam por DM). A pessoa me disse que era sim, mas também disse para aguardar porque o melhor estava por vir. Dito e feito.
Mesmo que você seja um perito no tema sobrenatural retratado, continue a assistir até o fim e te garanto que não vai se arrepender. O desenvolvimento e sobretudo, as consequências de tudo o que se avizinhava até aquele momento, são acachapantes. Quando o ritmo começa a acelerar, as discussões ficarem mais febris e (esse é o sinal derradeiro) a fanática religiosa da cidade, Bev Keane (Samantha Sloyan, perfeita) adentra com tudo no fundamentalismo mais doentio e hipócrita (im)possível, é que é hora de respirar fundo, agarrar a almofada e esperar golpe no estômago atrás de golpes na alma.
Sério. Enquanto estou escrevendo, estou me segurando pra não assistir mais uma vez, o que não ocorre com muita frequência. O terror é gráfico sim, é pesado sim, aterrorizante com certeza, mas o drama, a confusão, a falta de esperança e expectativa que leva tantos ali a se desesperarem a ponto de fazerem o que fazem, é o mais tocante. A comunidade está perdida, virou uma cidade-fantasma depois de um desastre ambiental no qual quem foi punido na verdade foram as vítimas.
Amei também que, finalmente, um personagem muçulmano não é ou terrorista ou revoltado com o islamismo, é só um cara normal que, ora bolas, é muçulmano (assim como poderia ser de qualquer religião ou não ter nenhuma). E, também me chamou a atenção a forma como o xerife Hassan (Rahul Kohli, competente como sempre) tem uma paciência sobre-humana com preconceito (a princípio velado, depois escancarado e até violento) e agressividade passiva. A cena dele na delegacia contando à médica Sarah os acontecimentos que o levaram a aceitar o trabalho naquela cidade abandonada pelo bem do filho e pra ter um pouco de paz (a ironia mordaz aqui foi embasbacante), sem flashbacks, só contando com o talento do ator para narrar a história do personagem foi tão ou mais brilhante que o que LoKi fez rapidamente com Wunmi Mosaku na cena em que lembra sua vida antes de ser sequestrada pela AVT/TVA. Aqui, o ator teve tempo de se estender e mostrar mais nuances de atuação. Passou com veracidade todo o caminho tortuoso que seguiu e que desembocou onde ele estava agora.
A fotografia também chama a atenção, pois apesar se ser em grande parte, feita de cores frias, num tom azulado, para passar a sensação de esterilidade e amortecimento generalizado que a população sente, quando existem cenas nas quais o uso das cores exprime esperança e até libertação elas são bem e abundantemente utilizadas.
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