Tengo Miedo Torero/Tenho Medo Toureiro (2020): Um mestre da síntese e uma estória bem contada, dentro de um triste pedaço da história chilena

 


Como contar uma estória significativa, que se passa num período histórico importante (e um tanto traumático), mas mesmo de forma inteligente e realista, manter a leveza e até doçura de uma alma cálida como é a da protagonista, e, ainda por cima fazer isso em um tempo relativamente curto? 

Pois Tengo Miedo Torero acerta com louvor e faz tudo que falei acima. E talvez mais. 

La Loca del Frente é uma travesti chilena que vive na parte mais pobre de Santiago, de andar vacilante e curvado. Mas não é que ela tenha algum problema de saúde, só está (talvez mesmo inconscientemente) sempre esperando ser repreendida, agredida ou correr risco de vida. Afinal, na época em que se passa o longa, 1986, Chile vive na ditadura de Pinochet, onde morte por nada era banal. E, no caso dela, mais certa ainda. 

Nesse cenário que causa mais medo que muito filme de terror, ao fugir dos militares que invadiram a boate onde ela estava com amigas, ela é ajudada pelo mexicano guerrilheiro comunista que se diz arquiteto, Carlos. 

No fundo, ele é tão preconceituoso quanto os militares que estão no poder, no entanto se aproxima de La Loca para que ela ceda suporte ao movimento da resistência, mas no meio do interesse pela causa, ele passa a a realmente ter um carinho por ela (até onde sua homofobia permite), até porque só um ser desprovido de alma não teria. 

Isso por quê a personagem é tão querida, amável e doce que chega a ser singela. Tal singeleza, assim como um humor e carisma deliciosos e uma inteligência aguçada, quem passa é Alfredo Castro, que segundo minhas pesquisas, é um dos melhores atores chilenos da atualidade, há quem diga até que é o melhor. La Loca não poderia ser interpretada tão bem por mais ninguém. 

Leonardo Ortizgris é quem interpreta o revolucionário Carlos. E é detentor de talento enorme, também. 

Em pouquíssimo tempo fica estabelecida a índole dos personagens, suas motivações e vislumbra-se o porque de cada um ser como é. 

O cenário de onde La Loca vive também é rapidamente apresentado, e com eficácia tamanha que o assombro e até tristeza que causa pode gerar a impressão de aquele ser mais um personagem. Raros filmes conseguem isso. 

Sem serem expositivos, os diálogos são ricos e naturais. As cenas são, em geral simples, práticas e objetivas. 

Subitamente você compreende que, qualquer risco que La Loca esteja correndo, e qualquer ferida emocional que o ativista Carlos possa lhe causar, não é nada que ela não possa suportar. Dano maior que os que ela já sofreu, certamente não virá. Em uma das falas mais contundentes de todo o filme, a protagonista diz: 

"Sejam militares ou comunistas, qualquer que sejam, para eles nós seremos sempre um bando de bichas. Se algum dia houver uma revolução que nos inclua, me avise. Estarei na primeira fila. Agora saia da minha frente por que conheço seu povo (os comunistas)." 

Rodrigo Sepúlveda, o diretor, que também escreveu o roteiro a partir do livro de Pedro Lemebel, é ao mesmo tempo, muito prático e conciso, e também sensível e meticuloso. Essas qualidades todas reunidas num só profissional são tão benéficas quanto difíceis de se encontrar. 

A maneira seca que mostra como os comunistas maltratam La Loca, sem vergonha nenhuma de demonstrar desprezo, foi brilhantemente resumida nas participações curtas porém importantes de Julieta Zylberberg. Não há violência ou xingamentos. Ela só se comporta como se a protagonista não existisse, e quando tem que reconhecer sua presença, a trata como se ela fosse um estorvo, não uma auxiliar valiosa. 

Por alguns momentos, percebe-se que, talvez Carlos possa estar realmente se apaixonando por La Loca. Mas, como a sofrida (ainda que alegre e solar) travesti deixa claro, ela não tem reais esperanças de que eles vão virar um casal, dado o envolvimento do ativista com o comunismo, que jamais aceitaria um camarada gay(ou mesmo bi). 

Dói cada vez que La Loca derrama uma lágrima, fica triste, é agredida (ainda que sejam agressões leves, no sentido físico) ou sua vida corre risco. Nada nesse filme é mais poderoso que o amor que a protagonista nos inspira. Até à sua mãe nos apegamos quase sem notar. 

Uma de suas últimas frases ainda ressoa na minha mente e alma: 

"A vida vai ficar me devendo a história de amor que inventou para outros" 

Essa frase, por si, poderia resumir o longa todo: ela é relativamente curta, mas também é sensível, intensa, carregada de significado e também é simbólica. 

Não importa quem esteja no poder, não importa a ideologia apresentada. Não há lugar para ela, não há quem a acolha e ame abertamente, sem sofrer retaliações. Para todos os dois lados, ela não tem direito sequer de existir. 

Tengo medo torero também detém uma trilha sonora maravilhosa. 

O próprio título do filme, vem de uma música. Sem nenhum tipo de panfletagem, com uma linguagem direta e delicada, e uma protagonista apaixonante, certamente, dizer que este foi um dos melhores filmes deste ano, é justo. 

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                                                                       Nota: 9.0 

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