Promising Young Woman/Bela Vingança: Quando o preço da justiça não importa porque não há mais nada a perder

                                                          





Até onde você iria para fazer justiça?  

Vi Promising Young Woman/Bela Vingança(Emerald Fennell, 2020) sem saber nada dele. Simplesmente me apareceu e eu assisti. Quando começaram a pipocar as primeiras pessoas impressionadas e gerar um barulho, já tinha sido impactada e pude concordar com o público. 

Claro que teria quem encontrasse defeito, até porque nada é perfeito e todo roteiro é escrito sob um ponto de vista. E por mais que a britânica diretora, atriz e roteirista Emerald Fennell tenha usado uma competência singular ao contar a estória de Cassandra, - tanto que levou o Oscar por roteiro original- seria natural que viessem algumas pessoas discordar das atitudes da moçoila.

Não que, caso Cassie fosse real, ela fosse ligar para o que alguém pensa de sua forma de fazer a justiça acontecer. 

A personagem, perfeitamente interpretada por Carey Mulligan, vive sem a menor consideração pela opinião alheia. Seja ela da única amiga restante, Gail, (a maravilhosa Laverne Cox, mais conhecida por sua Sophia Burset de Orange is The New Black) ou dos pais, ou de quem quer que seja.

"Vive" na verdade, é uma força de expressão. Cassie existe, e sua existência está em suspenso desde um evento grotesco na sua faculdade de medicina. Esse acontecimento lhe tirou toda a paz e qualquer sonho de futuro. A única coisa que a dá um sentimento de isso vale à pena é sair à noite, caçar homens que sejam predadores sexuais, embora não pareçam, o famoso lobo em pele de cordeiro, e fingir que está trôpega de bêbada, pra, quando eles forem dar o bote,- na segurança dos seus lares, quando já podem deixar a máscara de bom rapaz cair- ela mostrar que está bem desperta e virar o jogo fazendo-os entender que quem está vulnerável ali não é ela. 

Não vou mentir, só essa sinopse já me deu uma baita satisfação. Já me senti vingada pelas mulheres em geral somente com essa premissa e as primeiras cenas. (Porque, Adam Brody, porque? Tava indo tão bem)

Mas porque ela não pode fazer essas pegadinhas à noite e ter um bom empregou e/ou ir pra faculdade de dia?
Porque, na realidade, ela só dá esses escapes por não poder fazer a justiça real que (talvez) devolveria a vontade dela de viver e realizar. 

Até que, ao, finalmente dar uma chance de ter alguma interação normal com um rapaz, ela vê a oportunidade de dar a quem merece o seu justo retorno por ter, na verdade, lhe tirado tudo. Mesmo que a pessoa (pessoas, pra ser honesta) não possua consciência - ou diga não possuir - de ter causado tamanho horror.

Cassandra ainda hesita um segundo antes de prosseguir com seus planos, - e mais uma vez, após já tê-los começado - mas ela sabe que seria incapaz de continuar se não fizesse isso. Ela sente como se fosse o dever dela. Não importam as consequências.

Vi algumas pessoas condenando a conduta da protagonista no curso de vingança (na real, é só justiça aqui) no tocante às mulheres que ela julga corresponsáveis por sua tragédia pessoal. E achei, que, no mínimo, essas pessoas não compreenderam essa parte, ou o filme como um todo.

Em primeiro lugar:  Ela culpa primeira e totalmente a si mesma pelo acontecido. Muito do peso que ela carrega que não a deixa seguir em frente é por culpa e isso fica evidente na conversa com alguns personagens, principalmente a mãe de Nina. 

Depois, as mulheres em questão agiram com uma misoginia nojenta, um comodismo sádico e foram cúmplices sim num crime que resultou numa tragédia. Elas deveriam ter sido punidas. Mas, tanto aos olhos da lei, quanto da sociedade, elas não fizeram nada, então coube à Cassie lhes dar, os sustos devidos. Nada do que ela provoca é sequer desproporcional, o que poderia acontecer, caso ela se deixasse levar somente pelos sentimentos. Entretanto, a jovem sabe muito bem que, infligir uma dor desnecessária àquelas mulheres que pecaram por falta de empatia e interesses pessoais, não adiantaria nada e, muito menos, mitigaria a sua própria. Somente uma coisa é capaz de tal feito e é isso a que é dedicado o estupendo terceiro arco. 

Mesmo eu não sabendo absolutamente nada sobre o filme ao assisti-lo, tinha uma coisa no desenrolar...uma vibe não tão americana. 

Lembro de ter dito a mim mesma: "Isso não vai acabar da forma tradicional não. Tá com muita cara de suspense de investigação britânico."
Mas ainda assim, me deu uma boa surpreendida e uma sensação de ter visto algo novo. Inquietante e espantoso no decorrer, e com um fechamento estrondoso. 

Emerald e sua equipe técnica souberam usar também a fotografia para conversar com o público. 
Nas partes em que Cassie está mais relaxada, mais tranquila, quase feliz, as cores são mais vibrantes, mais solares, e quando, por exemplo, ela está em casa com os pais nas cenas iniciais, tudo tem tom de cinza, como se dentro do aposento estivesse permanentemente nublado. Se reparar bem, a impressão que dá é que há uma nuvem acima da cabeça protagonista, que lhe oprime e deixa apática. 

  Depois percebe-se que não é uma nuvem, é uma tempestade.

As medidas que ela toma para que tudo ocorra finalmente como deve e a justiça seja finalmente feita e por completo, são, não só palpáveis, são corretas. Tudo o que Cassandra faz no enredo é coerente e sensato dentro da narrativa e fora dela também. Uma coisa que quase não acompanha roteiros de vingança feminina é essa sensatez, essa sobriedade. Talvez por serem (se não na totalidade, na maioria são) escritos por homens.

Uma das críticas mais descabidas que vi foi a de que, "Carey Mulligan, com exceção das cenas em que finge animação, está sempre emburrada". 

A protagonista (que Carey interpreta sem falha alguma) não está emburrada, ela está exausta. Sua vida, expectativas e energias foram transformadas em cinza depois da catástrofe anos atrás, e toda vez, que ela sai em busca de presas nas boates, em nenhuma única vez, ela se decepciona com o quanto a mulher é objetificada, e, paradoxalmente, culpada de tal objetificação. Noite após noite, um cavalheiro vem se aproveitar dela. 

Nada aqui fica fantasioso, principalmente pelo tema abordado. 

Seria muito bom se um filme que falasse de assédio, estupro, misoginia, objetificação, culpabilização da vítima, impunidade a assediadores e estupradores fosse uma coisa fora da realidade. 
Infelizmente não é.  
Todo dia encontra-se pelo menos uma notícia sobre uma mulher (ou menina) que sofreu abuso, que foi espancada, e que sofreu somente por ser mulher. 

A coisa toda que algumas pessoas não compreenderam é que Carrie não é uma feminazi querendo acabar com um macho escroto. É só uma mulher que não teve justiça, não viu um criminoso ser punido, e por isso vai atrás de que ele e todos os envolvidos recebam o que merecem, por ser o certo.

Recomendo e muito esse longa com um ritmo acertado e em constante mudança, que às vezes parece de videoclipe de música pop (até por alguns cenários mais delicados e de cores fofas, como a cafeteria), e transladando entre suspense, thriller de vingança (numa repaginação muito bem vinda e até necessária do gênero), tons de humor, um drama doloroso e realista, e ótimas atuações (Bo Burnham como Ryan, Allison Brie com sua Madison, Clancy Brown e Jennifer Coolidge fazendo Stanley e Susan Thomas, os pais de Cassie, e Alfred Molina interpretando o torturado advogado Jordan Green estão todos afiadíssimos).

Aliás, o roteiro foi inspirado por um livro chamado "Eu tenho um nome" da autora Chanel Miller.
                                                                                                         
                                                                                    Nota: 8.7
                                                                               
Só mais uma coisinha:

Alguns anos atrás, não sei ao certo quanto tempo, este mesmo blog abrigou uma página de "crônicas", que chamei assim por não pensar em nada melhor. "Pensamentos Avulsos" talvez ficasse mais apropriado. O fato é que, a primeira dessas coisas a sair da minha mente perturbada foi o seguinte texto/poema/treco, e, pelo tema, achei pertinente trazê-lo ao fim dessa crítica:

Balada da Meretriz Ensanguentada
💋👠💔🎩
Noite, lua, árvores, carro.
Sapato lustrado, terno caro, cabelo arrumado.
Roupa colante, andar vacilante, lágrima persistente, sorriso forçado.
Tapas seguidos de mordidas, lambidas, gritos, cabelos puxados, vestido rasgado.
A dor penetra-me até dentes e ossos, o membro parte-me o corpo ao meio.
Minh'alma enlouquece de remorso, um cigarro é apagado em meu seio.
Mãos cruéis agarram meu pescoço, cortando a respiração, enquanto seu prazer é satisfeito,
Quase sinto alívio, pensando que a tortura está acabando mas acabará do seu jeito.
Arrancas com o carro, eu não tenho forças para levantar, avisto uma estrada de terra, erma.
Penso em mamãe e como ela ficara só e sei que mais ninguém chorará sua perda.
Me arrastas o corpo para fora, eu avisto as estrelas e peço misericórdia a Deus, pois sei que tu não terás,
Ele me ouve, pois agora estou vendo de longe, uma jovem ensanguentada, maquiagem borrada.
O sádico ri enquanto a faca transpassa trinta vezes o corpo que era meu, e atravessa meu pescoço.
Ele esvazia a garrafa de vodka e risca um fósforo que joga sobre o cadáver, corre um cachorro.
Agora o assassino dá lugar ao respeitável executivo, com medo de ser pego, adentra o carro e vai.
Voltará ao seu chique edifício, se limpará com esmero enquanto eu já não existo mais.



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