Deus existe e vive em Bruxelas! Em "O Novíssimo Testamento" dramédia belga iconoclasta e genial .

 


Ea tem dez anos, vive com uma mãe que não faz nada além de bordar e olhar para sua coleção de cartões de baseball. Morre de medo do marido e, claro, não dá um pio. 
Seu irmão saiu de casa e não voltará para o teto do pai, que é um misógino autoritário e sádico que ignora a filha, somente tomando conhecimento de sua existência para brigar com a garota e cujo único contentamento é exercer poder. 
"Todo valentão acha que é Deus", você pode pensar. Nesse caso é verdade.
Aqui, obviamente, se trata do Deus judaico-cristão ocidental na sua pose de todo-poderoso que subjuga a humanidade porque pode. E se compraz nisso. 
Faz uma série de "leis" que tornam quase impossível ao ser humano ter uma vida tranquila. 
Se diverte com o nosso caos e infelicidade. 
Um dia, cansada de tudo isso, Ea invade o escritório do Pai seguindo instruções do irmão famoso e dá um bug no sistema do computador, que Ele usa para comandar a humanidade e tudo na Terra. 

Lógico que após esse ato de rebeldia, a única saída é uma fuga para a vida terrena. 


Porque é tão bom?
Não é de hoje que o ser humano gosta de fazer uma pilhéria cinematográfica com o divino e a fé. 
Poucos se saíram bem, como o célebre grupo de comédia britânico Monty Python. Na maioria das vezes simplesmente não dá certo. Ou se ofende o público em demasia, ou tão somente não tem graça. 
Porém, difícil mesmo é, além de uma boa risada, ainda gerar drama, reflexões filosóficas, romance e uma certa tensão, tudo isso de maneira concisa e perspicaz. 
Se todo esse pacote ainda contar com um elenco afiado e uma direção sensata, temos um milagre. 
*(perdoe-me a piadoca infame)*

E, certamente, O Novíssimo Testamento(2015) é um milagre.  

Dirigido lindamente por Jaco Van Dormael (Um Homem com Duas Vidas, Sr. Ninguém) é desses eventos que ocorrem quando tudo conflui para um filme ficar a milímetros de se tornar uma obra-prima. Sem dúvida, a película contém muita comédia nos cento e treze minutos de exibição, porém não é um tipo só de comédia. Sim, tem aquela galhofa mais óbvia, mas também tem um humor um pouco mais refinado e uma pitada de morbidez, cinismo e falas ácidas. Tantos tons de gracejo podem passar uma sensação de irregularidade. Com seus momentos fantasiosos e elementos de surrealismo, uma poesia mesclada com  narrativa de fábula, e trilha sonora impecável, quase não há nada que se possa apontar como falha, erro, falta ou excesso.

Voltando ao tom surrealista, só pra esclarecer: existem sim passagens mais puxadas para o nonsense, mas nada que fique totalmente sem pé nem cabeça, . 

 Perdão, minto: há um elemento completamente fora da casinha e é justo envolvendo a única atriz mais conhecida mundialmente - ou pelo menos do público tupiniquim - do elenco, Catherine Deneuve. Entretanto, por mais despropositado que possa parecer, se você pensar bem, faz sentido sim. 
Algumas pessoas acharam absurdo demais e apontaram como sendo a única coisa de que não gostaram. 
Já eu, achei interessante e, mesmo que não tenha realmente entendido, (pois pra saber se entendi mesmo, só perguntando ao diretor, e, infelizmente não posso fazer isso, por maior que seja minha vontade de tomar um café com Dormael) criei uma resposta na minha mente para tal situação insólita. 


Parte técnica competente e sensível
A fotografia é muito sóbria e elegante na maior parte do tempo, passando a frieza e esterilidade na qual o Deus egoísta e malvado transformou o mundo e na comodidade que o ser humano adotou. 
Nas partes em que as cores são ressaltadas, em que há um calor a ser passado, são justamente os momentos nos quais a vida se rebela. A alma voluntariosa e lutadora dos filhos se revelam e se tornam oponentes ao Pai.
Os movimentos de câmera, aproximando a lente dos apóstolos e desfocando tudo em volta, enquanto contam suas vidas, de forma sucinta, não é somente belo. É quase idílico. 
As partes em que focam nos personagens e eles olham para o público, numa mistura de vulnerabilidade e exibição, ficaram ótimas. A trilha sonora, majoritariamente composta por música clássica, compõe o cenário sublime que é quase perfeito.
O impressionante é que tudo isso poderia sair muito errado, mas graças à competência e cuidado de todos os envolvidos, principalmente a direção, o resultado foi fenomenal. 

Roteiro, enredo, diálogos
A ideia, por si só, já é muito boa. Valeria a assistida só pelo ponto de partida. Mas a forma genial (não gosto muito de usar esse termo por já ter ficado banalizado com qualquer coisa que as pessoas achem acima da média, mas aqui, seu uso é somente justo) como a estória se desenvolve, como a narrativa trabalha para mostrar esse conto moderno, tornando tudo, por incrível que pareça, muito verossímil deveria ter sido destacada com mais rigor por crítica e público. 

Só soube desse longa recentemente por um post num grupo ou página de cinema no Facebook (Pseudo Cinéfilos Clube, se não me engano) e, para mim, isso é mau sinal. Sinal de que, de alguma forma, há muita injustiça no cinema sobre a quê é dado destaque. Todavia, isso é assunto para outro artigo.

Os diálogos são riquíssimos e cheios de sensibilidade e, por vezes, ternura, embora simples. Ao espectador mais atento, transparece a delicadeza e o profundo conhecimento dos roteiristas (Jaco Van Dormael e Thomas Gunzig) de como, no fundo, por mais tirano que Deus seja, o homem caracteriza sua existência pelo comodismo, superficialidade e egoísmo por conta própria, às vezes até sem perceber. 
Ea, como filha do Todo-Poderoso poderia intervir com mais imponência na vida das pessoas, mas além de sua atitude inicial, a única coisa que ela faz é mostrar aos seus discípulos que eles são donos de suas vidas, de seus caminhos, que não há nada que eles não possam fazer se não quiserem. Eles tem escolhas.

Falando nela, Pili Groyne, na época com dez ou onze anos (agora está com dezessete) levou o prêmio de melhor atriz no Festival de Sitges de 2015. E pudera! Com sua atuação minimalista, olhar penetrante, e passando ao mesmo tempo astúcia, clareza e doçura, fez de Ea uma personagem tão cativante quanto inesquecível.

Todo o elenco está maravilhoso. Não há o que reparar, não há nada a acrescentar. Como uma orquestra muito bem ensaiada, todos fazem o que é devido, no seu tempo marcado. As engrenagens aqui, estão a pleno vapor. 

Finalizando: É um filme primoroso, que recomendo sem pestanejar a todo e qualquer espectador. Do assíduo consumidor de blockbusters ao frequentador das sessões de cinema independente. Da criança ao senhor de idade. Sua linguagem acessível, seu ritmo (na maior parte do tempo) constante e sua originalidade fazem desse um dos melhores longas que já vi nos últimos anos. 
                                                                                                     
                                                                                                           Nota: 8.7
 
Uma nota de rodapé: 
Ao escrever esta matéria, fui buscar opiniões e reviews no YouTube. E, para minha surpresa, não encontrei ninguém (renomado ou não) que tenha feito uma crítica em vídeo de tal obra. Não no Brasil, pelo menos. Assim sendo, parti então para ver se encontrava alguma resenha escrita. E, ao avistar logo de cara o link escrito "rubensewaldfilho.blogspot.com", caí num choro sentido e incontrolável, como faço ao encontrar algo de minha falecida mãe. Não sei bem o que causou tal comoção. A curiosidade é que mamãe não gostava de Rubens. O achava arrogante, esnobe e debochado demais. Já eu o adorava, e muito por essas características. Infelizmente, também as possuo e não sei canalizá-las da forma produtiva e ao meu ver, charmosa, que Rubens fazia. Ele era a única pessoa que concordava comigo na opinião de que Saiorse Ronan é tremendamente superestimada. Nunca vou me esquecer de sua última transmissão do Oscar, na qual ele diz que não gosta dessa menina, se referindo a Ronan. Domingas Person, que estava fazendo dupla com ele responde, surpresa: "ah, mas ela está tão bem em Lady Bird." E ele arremata ao mesmo tempo que eu, no sofá de casa: "Não, não tá não". Até a entonação foi a mesma. Eu fui à loucura! Sabe o meme "Esse momento é meu!"? Foi exatamente o que eu senti. Tá aqui o print do meu post no facebook, quando compartilhei a memória desse dia, que não me deixa mentir:
                                     
Nunca conheci Rubens pessoalmente. Nem virtualmente tentei contato. Nunca me passou pela cabeça que ele tivesse redes sociais, ou eu teria tentado pelo menos receber um "oi". 
Sei que é algo muito pequeno, e até mesquinho, pela memória afetiva envolver um ranço. - e eu tenho plena noção de que muitos ranços que eu tenho, só eu tenho. 
Mas pra mim, é sim uma coisa que lembro com carinho, e a falta de Rubens me é sentida como se fosse alguém que, volta e meia viesse tomar um café com biscoitos aqui em casa. 

Provavelmente, a posteriori, vou me arrepender de ter feito essa nota de rodapé, e a apagarei, mas a princípio, senti que deveria escrevê-la. 


Cabeçalho do blog do Rubens


Gostou da crítica? Quer ajudar a manter (e crescer) o blog? Vai na HOME e clique nos botõezinhos pra curtir a página no facebook e seguir-me no twitter. Se desejar, também se tornar um padrinho/madrinha do blog, manda um pix de qualquer valor para carollsophies@gmail.com 


 

 


Comentários

Postagens mais visitadas