O Paraíso e A Serpente: Quando o ressentimento e a ambição encontram a psicopatia
Obs: Aqui só falarei sobre a série, caso deseje saber mais sobre a história real, indico o seguinte artigo: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/04/18/conheca-a-historia-real-do-assassino-da-serie-o-paraiso-e-a-serpente.htm
Existem séries e filmes que nós assistimos e pensamos: "Haja suspensão da descrença, ah tá que isso aconteceria na realidade". Mas e quando a série é baseada numa história verídica e, na vida real o ocorrido foi ainda pior?
Já passei por essa experiência algumas vezes. A que, talvez, mais me marcou foi com o longa A Órfã dirigido por Jaume Collet-Serra, escrito por David Johnson e Alex Mace, que conta a história real de uma psicopata que se aproveita de sua deficiência para cometer crimes.
Mas, provavelmente agora, a Netflix tenha me "presenteado" com um trauma que se equipara ao de 2009.
O Paraíso e A Serpente, estrelado por Tahar Rahim conta a história de Charles Sobhraj, golpista e assassino que aterrorizou o sudoeste asiático nos anos 70.
Se você pensa que vai encontrar mais uma assassino em série com gosto pela matança, que se adora e faz do crime um hobbie, se engana.
Charles, que adota o nome de Alain Gautier, não mata por esporte, não engana por que gosta, não aterroriza por prazer. Na mente doentia do psicopata, tudo o que faz é somente um meio para um fim. Que fim? O conforto, o luxo e o pertencimento à sociedade branca ocidental que, de uma forma ou de outra, ele considera seu direito e lhe foi negado. Logicamente, para qualquer ser racional, tudo o que ele faz nada mais é do que crime, mas na mentalidade destorcida de Charles ele só está tomando o que lhe é devido. Ambicioso (ambição essa, que, caso fosse bem canalizada, poderia transformá-lo num empresário dos melhores), cruel, frio, extremamente inteligente e carismático. O assassino conta com a ajuda da namorada, a canadense Marie-Andrée Leclerc (vivida por Jenna Coleman) e Ajay Chowdhury (Amesh Edireweera) para tudo. Quase como fantoches que ele usa como quer. É exatamente essa a impressão que ele passa a todo momento: de um exímio manipulador.
Alguns instantes após conhecer o jovem francês Dominique, já o tinha sob seu domínio, e eu me perguntei: "Será que esse rapaz era tão ingênuo assim? Ou será que ele(Charles) era assim com todos?! As pessoas o seguiam cegamente logo após o conhecer? Automaticamente?". A resposta curta para todas as perguntas é: SIM. Dominique certamente possuía um grau maior de inocência que a maioria das pessoas, mas Charles também era hábil em enredar e enganar, logo de cara. A sensação que se tem é que, ao conhecê-lo, nem se concebe a ideia de não confiar nele, como se fosse impossível que possa vir algum mal de tal pessoa, assim como de sua namorada.
Marie, aliás, chega a ser pior do que Charles em alguns momentos. Pois, ele, apesar de não obter prazer com os assassinatos, os comete com a mesma frieza que qualquer pessoa que trabalha com burocracia, "faz o que tem que fazer" e pronto.
Ela, não. Por vezes, Marie, que, pasme, é católica fervorosa, fica profundamente perturbada com a maldade do amante, com tudo o que, se não ajuda ativamente a acontecer, assiste passivamente. Mas nada faz para sair daquela situação, não tenta reverter nenhum curso ao "se apegar" a alguma vítima.
O Ressentimento que, em parte, criou o monstro
Terapia...que falta faz uma terapia às vezes, né? Quem sabe se Charles Sobhraj tivesse tido umas conversas com um psicólogo, várias vidas não teriam sido poupadas? Nascido no Vietnã, indo morar na França com a mãe após o divórcio dos pais, e, sendo rejeitado pela mesma e por seu novo marido, o criminoso vê nos jovens brancos ocidentais tudo o que ele não teve, e, que, julgava que era direito seu: dinheiro, facilidades e, claro, uma família estruturada. É evidente o desprezo que ele sente pelos hippies privilegiados que cruzam seu caminho. Charles muda o nome para Alain pois quer ser francês. Na verdade, em algum ponto, todo ser abastado, ocidental e branco que ele mata, está matando o padrasto que não o acolheu. Mas, por favor, não sejamos imbecis a ponto de acreditar que o que ele faz, faz por alguma ideologia, ou como uma forma tresloucada de justiça social. Longe disso. O que Charles quer é justamente ser parte da elite que ele, nos discursos a Ajay, sempre condena. Odeia sua própria cor, sua etnia, sua origem. Marie, que também tem problemas com a auto aceitação é escolhida por ele por ser parecida com sua ex-mulher branca, bonita, poder se passar facilmente por francesa, e, assim como Ajay, estar disposta a fazer de tudo para simplesmente, não ser quem é. O trio da auto negação. Seria até engraçado, se não houvesse tanta tragédia envolvida.
O solitário paladino holandês da Justiça
Provavelmente Charles teria seguido impune por muito mais tempo, ou quem sabe, pelo resto da vida se não tivesse assassinado um jovem casal holandês. Tal crime chegou ao conhecimento do diplomata Hermann Kippenberg, que consegue juntar dois mais dois e parece ser a única pessoa em todas as embaixadas com bom senso, sede de justiça e ética. Graças a seus esforços, (e de sua esposa, e mais algumas outras pessoas), a Interpol finalmente decide tomar conta do caso e caçar o criminoso, mas até isso acontecer, até Charles e Marie se tornarem procurados, Hermann peregrina, obcecado, e, por muito tempo, sozinho, em busca de explicações e justiça. Seu casamento chega a correr risco de acabar, dada sua dedicação em capturar o golpista e assassino. É admirável sua forma de conduzir tanto a investigação, quanto em lidar com a inevitável decepção em perceber não só a incompetência, mas, muitas vezes, a indiferença com que as autoridades de todos os países das vítimas o tratam na sua suspeita, e até depois, com provas e evidências de crimes. O mais incrível é que Hermann não é um herói, é somente um ser humano que age como tal, ou seja, se importa com outros seres humanos, e um funcionário que faz seu trabalho. Gente! Olha o absurdo!
Em suma:
A série é boa sim, não brilhante, não é a melhor série do gênero. É sim, uma história que precisava ser mostrada, e foi bem contada. Mas é também chocante, não pelo que mostra, mas pelo que conta sem mostrar, o dito pelo não dito. Como quase toda série britânica, não começa freneticamente, mas, caso você dê uma piscada, acaba perdendo algum detalhe essencial pra entender a trama. Os atores estão muito bem, a produção, idem. Se há algum incômodo é, em, talvez, em um momento ou outro, deixar como que subentendido, que todo o mal causado pelo psicopata seja apenas pela rejeição materna e a sociedade. Mas, francamente, nem que essa tecla fosse batida do início ao fim e com insistência,(o que, definitivamente, não é o caso) não tornaria isso verdade, pra qualquer ser dotado de apenas um neurônio em funcionamento.
Nota: 7,8
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